Preconceito impede de cruzar “fronteira” para se tornar bilíngue 58w4c
Brasileiros improvisam, “pero no mucho”, no portunhol, mas muitas vezes não ultraam a fronteira e perdem a chance de se tornarem bilíngues 2y5v5k
A distância entre Corumbá (MS) e Arroyo Concepción, cidade boliviana na fronteira seca com o Brasil, é pouca em termos de quilometragem. O mesmo ocorre entre Pedro Juan Caballero, no Paraguai, e Ponta Porã (MS). Mas quando o assunto é idioma essa separação aumenta. Os brasileiros improvisam, “pero no mucho”, no portunhol, mas muitas vezes perdem a chance de se tornarem bilíngues. A causa pode estar no preconceito.

“O brasileiro, infelizmente, não valoriza essa proximidade e essa possibilidade de se tornar bilíngue”, pontua a professora doutora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) em Corumbá, Suzana Mancilla, especialista em língua de fronteiras.
Em se tratando especificamente da região de fronteira da Bolívia com o Brasil, entre Corumbá e Arroyo Concepción, a professora explica, com base em estudos, que há um interesse maior dos bolivianos em aprender a língua portuguesa que o contrário.
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A análise é compartilhada pela também professora doutora da UFMS Rosângela Villa, que atua no Laboratório de Línguas em Contato e Políticas Linguísticas para Áreas de Fronteira do campus do Pantanal.
“Ao contrário dos bolivianos que se esforçam em aprender o português, nesta fronteira, esperando, com isso, uma oportunidade de emprego, os brasileiros não demonstram interesse em aprender o espanhol, exceto por motivo acadêmico, de trabalho ou de viagens para países de língua espanhola”.
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Nascida e criada na cidade boliviana de Roboré, Fatima Gonzales Arteaga, de 28 anos, costumava ir até Corumbá para fazer comprar e, à época, nem tentava falar o português por “vergonha”. A situação mudou quando ela ou a cursar Medicina em Santa Cruz e assim conviver com vários brasileiros. Segundo ela, desde então, o portunhol ou a fazer parte da rotina. Confira o relato em áudio:

Em Santa Cruz, o interesse em aprender o idioma um do outro é mútuo por questão de necessidade, mas Fatima também percebe que na região da fronteira os bolivianos parecem se esforçar mais em tentar falar o português que o contrário. Ela não levanta nenhuma hipótese sobre os motivos, mas pesquisas acadêmicas, sim.
O tal do preconceito 1l2h1i
Conforme a professora Suzana, estudos indicam que existe, sim, um preconceito contra os bolivianos que acaba criando uma separação.
“É uma questão social que envolve um desconhecimento e uma desvalorização de uma cultura tão rica”, declara a professora.

Segundo ela, neste contexto preconceituoso, os bolivianos são tratados como pessoas mais atrasadas, mais pobres e até mais feias. Obviamente, esta não é uma visão de todos os brasileiros.
“São valorações de todo o tipo: estéticas, culturais. Todas fruto de um desconhecimento de uma falta de informação”, completa Suzana.
Castelhano ou Espanhol? 5f201q
Um dos indícios desse preconceito é a preferência que muitos dão em falar o idioma espanhol ao invés do castelhano, não que esteja errado.
“O castelhano tem um status diferente do espanhol. Quando você fala espanhol as pessoas associam a Espanha, então tem um status mais elevado. Quando se fala castelhano as pessoas entendem que se trata de uma língua de fronteira, uma língua dos indígenas. Como se fosse uma sublíngua”, pontua Suzana.
O fato é que os termos são sinônimos e a língua oficial da Espanha é o castelhano, conforme a constituição.
Outra fronteira 6q1u6g

A professora de espanhol Andréia Aguero é brasileira e filha de paraguaios. Ela confirma que há um certo preconceito em relação ao país no sentido de relacionar o Paraguai a um território de “venda de muambas, produtos não originais e corredor do tráfico”.
“Esse preconceito existe por conta da falta de informação dos brasileiros porque é um país com a terra extremamente fértil, onde tudo o que se planta você consegue colher. Também é um país extremamente bonito. De natureza exuberante. Muitas pessoas conhecem só a faixa de fronteira. Tinham que conhecer como é o Paraguai por dentro”, diz Andréia.

Sobre o fato de a maioria dos brasileiros não ser bilíngue, mesmo morando tão perto de países que falam outro idioma, Andréia relaciona ao “comodismo” de todos se entenderem com base no “portunhol” ou no yopará, a mistura do espanhol com o castelhano tão presente no Paraguai.
A professora Rosângela Villa define esta mistura como “um recurso linguístico para ambos [falantes do espanhol e do português] atingirem a competência comunicativa em situação informal de uso das línguas. Afinal, é desta forma que todos se entendem”. Em suas pesquisas ela denomina essa troca de “bilinguismo funcional”.

Andréia reforça que, com o portunhol, até dá para “se safar”, mas quando a pessoa precisa fazer algo mais concreto como um documento ou contrato é fundamental ter o domínio real do idioma.
“Até por uma questão de respeito ao país onde você está indo cria vínculos, raízes”, diz citando os universitários que vão cursar na Bolívia ou Paraguai. Se ele vai ar um determinado tempo da vida dele ali, então por respeito a essa língua e essa cultura é bom que tenha o domínio da língua”, enfatiza Andréia.
Valorizar outra cultura, como pontuado por Andréia, é um meio de aprender. Na reportagem de sábado (5), o Primeira Página encerra a série de reportagens sobre o idioma da fronteira com informações sobre como essa mistura influencia músicas e poesias e dá dicas de locais que oferecem aulas de espanhol.
“Quem perde, na verdade, não é aquele que é o discriminado porque ele está se aproximando do brasileiro e construindo essa ponte pela língua. Se os brasileiros não têm conhecimento da língua também não têm conhecimento da cultura”, finaliza Suzana.