Lambe-lambe do Sócrates é protesto contra gourmetização do futebol 11m
O artista Kelton Medeiros de 40 anos aproveitou o clima de Copa do Mundo para celebrar a trajetória de um dos maiores ídolos que o futebol e a Seleção Brasileira já tiveram: Sócrates. Quem ar pela Avenida Presidente Ernesto Geisel no cruzamento com a Rua Curupaiti, no Bairro Cabreúva, vai ver a imagem do craque estampada em um lambe-lambe, técnica que tem se popularizado na Capital, graças ao trabalho do artista.
Mais que uma homenagem ao jogador que foi gigante, dentro e fora dos campos, o é um convite à reflexão. Encanta pela beleza e impressiona pelo que tem a dizer. O lambe-lambe do Sócrates é uma crítica ao esporte que tem se distanciado de quem é mais humilde, segundo o artista.

Kelton explica que a ideia do mural – que tem 3 metros de altura por 2,75 de comprimento -, surgiu a partir do movimento “Football Belongs to The People” que em português significa “O Futebol é do Povo”. A iniciativa nasceu entre torcedores do mundo todo que aram a levar nos estádios, faixas com a frases de apoio ao movimento como uma forma de protesto a “gourmetização” do esporte.
“Nas décadas de 80, 90 o futebol era para o povo, cansei de ir ao Pacaembu com meu pai e ver jogos a R$ 5 reais o ingresso, mas com o ar dos anos o futebol ficou muito caro. Nas últimas copas ainda surgiram acusações de corrupção, compra de votos, suborno. O futebol deixou de lado a sua função social e ou a ser corporativo, um gerador de riquezas, ficou tudo muito caro, seja no Catar ou no Brasil. Hoje em dia tem setores nos estádios que um trabalhador mais humilde, simplesmente não consegue ter o. A gente não consegue mais ver famílias inteiras nos estádios”, reflete Kelton.
Pela internet é possível encontrar manifestações do movimento no Brasil, mas também em países com a Itália e África do Sul. Na Capital, Kelton quis dar o seu toque especial, referenciando a iniciativa, mas também utilizando uma imagem que caracterizasse o seu trabalho. O artista já representou fotografias de um ícone da cultura sul-mato-grossense em seus lambe-lambes. A dama da viola, Helena Meireles, pode ser vista em postes espalhados em avenidas como Afonso Pena e Prefeito Heráclito Diniz de Figueiredo.

Desta vez, o artista quis homenagear outro ídolo que está mais ligado à sua memória afetiva. Assim como o jogador que estampa o lambe-lambe, Kelton nasceu no Pará, mas morou durante grande parte da juventude em São Bernardo do Campo, São Paulo, até se mudar para Mato Grosso do Sul em 1989.
“Desde garoto eu sou santista e meu pai Corinthiano o time do Sócrates que além de jogador, sempre esteve alinhado com pautas democráticas”, lembra.
Astro do Corinthians na década de 80, Sócrates foi símbolo do movimento Democracia Corinthiana que lutou contra a ditadura no país. O jogador e outros atletas como Casagrande, Zenon, Biro-Biro e Zé Maria, participaram de campanha pela volta do direito ao voto para presidente, em 1984. Em um de seus discursos, Sócrates chegou a declarar que, caso a emenda que propunha a realização de eleições presidenciais fosse aprovada, ele ficaria no Timão.
“Mas o plano não deu certo e ele acabou indo para Fiorentina, da Itália”, completa Kelton.
Além de bom de bola, Sócrates era um atleta que se preocupava com as questões do seu tempo. Na partida de estreia da Seleção contra a Espanha na Copa do Mundo de 1986, o “Doutor Sócrates” entrou em campo com uma faixa branca amarrada na cabeça onde estava escrito “Mexico sigue en pié”. Foi a forma que o atleta encontrou para manifestar sua solidariedade ao México, sede da competição, que sofria com os estragos de um terremoto em sua capital. Sócrates repetiu a atitude cada jogo do Brasil, com frases contra a fome, as guerras, o racismo e o imperialismo.
A imagem do jogador com a faixa na cabeça, cabelos cumpridos e barba, inclusive, é a mesma reproduzida por Kelton no muro onde fica a Casa de Cultura Jovens Bons, no Cabreúva. O local também abriga um lambe-lambe com a cantora sul-mato-grossense, Helena Meireles. (Confira aqui)
Ao lado da imagem de Sócrates estão as frases “o futebol é do povo” e “futebol torna grande o seu povo” em espanhol, além de “samba”, “forró” e “cumbia”, nomes dos estilos musicais populares no Brasil e na Colômbia.
De acordo com Kelton, o posicionamento político de Sócrates tem a ver com a proposta do movimento no qual se inspirou. Ilustrá-lo no lambe-lambe também remete a uma época em que o futebol ainda mantinha a sua essência popular e em que alguns jogadores, fora de campo, ostentavam engajamento social e inteligência e não apenas luxo e dancinhas nos TikTok.
“O Sócrates participou de vários debates como este que estamos vivendo no momento, tanto político quanto social e é uma inspiração para as gerações que amam o esporte de verdade”, diz.

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Kelton já perdeu a conta de quantos lambe-lambes espalhou pela cidade, nos últimos anos, mas só agora que as suas obras começaram a ter maior alcance. Somente nesta segunda-feira (28), a foto do lambe-lambe de Sócrates foi compartilhada em duas páginas do Instagram que juntas, acumulam mais de 75 mil seguidores. Para quem não conhece, a técnica do lambe-lambe surgiu como uma forma de propaganda, por meio de cartazes, mas virou manifestação artística e de protesto. Sua fixação nas paredes, muros e postes é feita utilizando cola branca e água por cima da impressão.
A reação positiva das pessoas, mesmo antes do término do lambe-lambe do Sócrates, surpreendeu o artista. Kelton conta que já sofreu ataques e ofensas nas ruas, pelo tom provocativo de algumas de suas obras. O preconceito ainda é uma realidade para quem faz arte de rua, explica o profissional, mas desta vez foi diferente.
“As pessoas pararam no local enquanto eu fazia o lambe-lambe, tiraram foto, elogiaram o meu trabalho. Fiquei bem contente e espero que as pessoas entendam essa minha mensagem. A gente tem que colorir a cidade e é isso que eu vou continuar fazendo. Muro branco, povo mudo”, conclui.