A nova (velha?) disputa por espaço no jogo do bicho em Campo Grande 6a4441
Apreensão de 700 máquinas em QG da jogatina revela que disputa pelo controle da atividade está em curso, depois de golpe da operação Omertà 6535z
A exploração do jogo do bicho na capital sul mato-grossense voltou às manchetes na semana ada, com a apreensão de 700 máquinas de mão usadas para registrar as apostas em Campo Grande.
Mais uma vez, ficou claro que a atividade ilegal está vivíssima, mesmo depois do golpe dado pela operação Omertà, quando mais de uma centena de pessoas foram implicadas em crimes, levando para a cadeia figurões que a população de Mato Grosso do Sul duvidava ver presos, diante de seu poderio de influência durante décadas.

Com a localização de um QG da jogatina, no bairro Monte Castelo, no dia 16 de outubro de 2023, a pergunta imediata é: quem está dominando o jogo que, culturalmente é aceito pela população como algo quase folclórico, mas para existir, carreia consigo diversos crimes correlatos, da corrupção policial aos assassinatos?
“Embora se trate de contravenção penal, a exploração do jogo do bicho fomenta a prática de outros crimes graves como corrupção, extorsão, lavagem de dinheiro, homicídios, até mesmo para garantir o próprio funcionamento do ilícito, tratando-se de atividade extremamente nociva à sociedade”, escrevem os promotores do Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado), na ação derivada da fase 6 da operação Omertà, batizada de Arca de Noé.
Trecho de denúncia do Gaeco à Justiça
“Não é exagero afirmar que o desenvolvimento do jogo ilegal vem sempre acompanhado de um rastro espesso de sangue”, continua o documento do Gaeco.

A resposta para o questionamento feito acima vai demorar um pouco, a considerar a velocidade do trabalho policial. Até o fechamento desta coluna, não havia definição sobre qual unidade da Polícia Civil será responsável por tocar a investigação para encontrar os responsáveis pelo material localizado “quase sem querer”, a partir de investigação de um roubo, que chegou até a casa onde estavam os equipamentos eletrônicos, parte deles até com apostas impressas.
Embora exista inquérito sobre o assunto correndo no Dracco (Departamento de Repressão a Corrupção e Combate ao Crime Organizado), a chancela para distribuição do inquérito aguarda o retorno do diretor-geral da Polícia Civil, Roberto Gurgel, de viagem aos Estados Unidos, a trabalho. Ele retorna nesta segunda-feira, 23 de outubro.
É incomum esse tipo de demora para deslanchar um inquérito, mas nas palavras do chefe da Polícia Civil, ele está dependendo do envio pelo Garras de relatório sobre a ocorrência.
Enquanto isso, o bicho segue solto pelas ruas, apesar do receio entre os cambistas. Conforme a investigação jornalística da Capivara Criminal, na sequência da ação, houve retração nas apostas, dado o temor de novos flagrantes. Porém, em conversa com apostador contumaz, sob condição de sigilo, a resposta foi de que fazer uma fezinha no jogo do bicho ainda é possível. É só saber o lugar ou a pessoa correta, agora não mais em bancas explícitas, mas até por meio do Whatsapp.
“Eu joguei cinco reais e ganhei 265 na semana ada”, revelou um apostador rotineiro, pequeno comerciante na periferia campo-grandense.
Para ele, a aposta é uma chance de ganhar uns trocados. “Eu não faço nada de errado, só faço um joguinho vez ou outra”, diz.
Essa conversa revela que os tentáculos do jogo de azar estão por aí, enraizados. É como se fosse erva daninha: você corta aqui, ela volta a crescer ali.
Se há demanda, há disputa pelo cliente 291w73
As conversas com fontes da coluna indicam movimento típico das regras do mercado consumidor de qualquer produto. Quando se abre um espaço onde há demanda, os atores envolvidos vão se movimentar para preencher. No caso de negócios ilegais, essa engenharia prevê uso de todos os recursos possíveis na disputa, inclusive a violência e o jogo de poder e influência.
Esse comportamento vem de muitos anos, de décadas. A Capivara Criminal deste domingo cavouca referências ao poder do jogo de bicho que durante muito tempo ficaram em sigilo, e só vieram à tona com a abertura dos arquivos do SNI (Serviço Nacional de Informações).

Está lá, registrado para quem quiser ver, a anotação de que não havia qualquer repressão à atividade. O cabeçalho do arquivo fala em omissão das secretarias estaduais em relação ao jogo do bicho.
Autoridades da época chegaram a defender publicamente a continuidade da loteria ilegal na clandestinidade, por razões que você vai ver mais à frente.
“O denominado “Jogo do Bicho” é exercido livremente nos Estados de MATO GROSSO e MATO GROSSO DO SUL, sem que exista qualquer tipo de repressão por parte das respectivas Secretarias Estaduais de Segurança Pública”, atesta relatório que consta do banco de dados “Memórias Reveladas”, e pode ser lido por qualquer cidadão. É só fazer um cadastro.
“No Estado de MATO GROSSO tal contravenção penal, a exemplo de MATO GROSSO DO SUL, a omissão é completa. Em CUIABÁ/MT, praticamente em todas as esquinas, existe uma banca de tal jogo, sendo comum verificar-se que os próprios policiais que por obrigação legal deveriam coibi-lo, fazem suas apostas até a presente data, nenhuma autoridade daquele Estado pronunciou-se a respeito”, descreve o documento confidencial do SNI, datado de 15 de maio de 1987.
Documento arquivado no projeto Memórias Reveladas
O texto diz que no estado de Mato Grosso do Sul, o próprio secretário de Segurança Pública de então, Francisco Leal de Queiróz, defendia o jogo do bicho e era contra a legalização, defendida por alguns como forma de controlar a atividade e até recolher impostos sobre ela. Leal de Queiroz, que foi deputado estadual, prefeito de Três Lagoas e também escritor, morreu em 2019.
“Eu sou pela manutenção do jogo do bicho culturalmente, da maneira que ele existe, porque foi inventado por um brasileiro, o Barão de DRUMOND”, declarou o secretário à imprensa, em 13 de março de 1987, conforme a citação no relatório confidencial.
Francisco Leal de Queiroz, ex-secretário de Segurança de MS
“Para FRANCISCO LEAL DE QUEIROZ o “jogo do azar” faz parte da cultura brasileira, dando empregos aos pobres, ajudando o Carnaval do RIO DE JANEIRO e até time de futebol (lembrou de CASTOR DE ANDRADE, presidente do BANGU ATLÉTICO CLUBE)”, prossegue o documento.
Na visão do então titular da pasta da Segurança Pública em Mato Grosso do Sul, a institucionalização da loteca dos bichos “acarretaria prejuízos às camadas de renda social menor”.

“No dia em que você legalizar a atividade, ela será explorada numa lojinha em que se exige que a funcionária tenha, pelo menos, o segundo grau, como na Loto, como na Loteria Federal e, quando isso acontecer, centenas e milhares de famílias perderiam seus ganhos”.
Francisco Leal de Queiróz
Na declaração atribuída a Leal de Queiroz, o argumento é de que a tributação ou legalização da atividade, como alguns políticos defendiam, seria “uma verdadeira afronta àqueles que dependem diretamente dos empregos oferecidos.”
O secretário, registra o relatório, vai além.
“Frisou que, dentro de um contexto geral, o verdadeiro “charme” da atividade vem de sua ilegalidade”.
Francisco Leal de Queiróz
No encerramento da lauda sigilosa, é feita observação política, que conecta o registro de mais de três décadas atrás com um sobrenome envolvido, indiretamente, na apreensão do QG do bicho uma semana atrás.
“Convém salientar que, na divisão das Secretarias Estaduais às diversas facções políticas que apoiaram o atual Governador MARCELO MIRANDA SOARES (B0074603) coube ao PARTIDO DA FRENTE LIBERAL (PFL) a Secretaria de Segurança Pública. Sobre a mesma, exerce grande influência o Deputado Estadual, por aquele partido, ROBERTO RAZUK (B0156851), conhecido banqueiro do “jogo do bicho” na região de DOURADOS/MS”.
Confira o documento na íntegra:
Roberto Razuk, ex-deputado estadual, é pai de Roberto Razuk Filho, o deputado estadual Neno Razuk (PL). O nome dele surgiu depois da descoberta das 700 máquinas porque uma das nove pessoas flagradas no lugar é o major reformado da Polícia Militar Gilberto Luiz dos Santos, conhecido como “G.Santos”, nomeado na assessoria de Neno Razuk na Assembleia Legislativa.
Neno, via assessoria de imprensa, informou durante a semana que só vai comentar o assunto quando a defesa de seu assessor tiver detalhamento sobre a investigação. O major foi procurado, chegou a conversar com esta colunista, e depois não respondeu as mensagens no Whatsapp.
No dia 16, “G.Santos” prestou declarações no Garras, assim como as outras oito pessoas, e foi liberado. Em uníssono, os personagens flagrados na casa disseram estar ali para inocentes jogos de baralho e negaram saber a origem dos dispositivos para registro de aposta no bicho.
Só quando o inquérito sobre a apreensão de máquinas usadas para apostas for distribuído e começar a andar, o novo capítulo sobre a jogatina terá avanço.
Ação em andamento 43j4m
Quanto à ação movida pelo Gaeco citada no texto, está na fase de depoimento das testemunhas. São 16 réus, por lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa, além da contravenção penal de exploração ilegal de jogo de azar.
Entre os réus, estão os irmãos Jamilson Name Filho, deputado estadual pelo PSDB, e Jamil Name Filho, preso desde setembro 2019, quando a Omertà colocou sua primeira fase nas ruas.
Jamilson e Jamilzinho são filhos de Jamil Name, durante anos apontado como o chefe do jogo do bicho em Campo Grande e municípios da região. “Jamilzão”, “Velho” ou “Canguru” aparece em relatórios do SNI também. Ele morreu na cadeia, aos 81 anos, vítima de covid-19. Segundo acusação do Gaeco, o deputado estadual assumiu os negócios ilegais, usando como fachada a empresa Pantanal Cap, de titulo de capitalização, pertencente à família.
Por causa da suspeita, R$ 18 milhões em bens da empresa estão bloqueados. O deputado nega qualquer participação em negócios escusos e afirma que sua inocência será provada ao longo do processo.